sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Kaledrina



Ali está ela, caída, estática. Seu belo e delicado rosto dormia sereno. Sua maquiagem perfeita lhe cai muito bem, criando um rosto lindo e misterioso. O vestido dela é roxo e branco, cheio de babados, como aqueles usados pelas mais altas condessas da cidade... e aqui estou eu, exausto, com o coração disparado; arrastar o machado até aqui para acabar de vez com isso, não é coisa fácil. Eu sei que devo, mas não quero, não com ela... Caminho até seu corpo adormecido e lhe acaricio os cabelos cacheados. Aperto o machado na outra mão, estou suando muito...
Como foi que as coisas chegaram a isso?

Que me lembro já faz uns meses, não sei quantos, mas são muitos. Muitos meses desde que a encontrei. Eu estava no laboratório da StanCorp, trabalhando em um projeto próprio, algo para tentar impressionar meu pai, nada mais que o dono da empresa e um dos lordes mais ricos da Inglaterra. Sir Richard Stanford. Sou o filho mais novo dos Stanford, e minha existência é muito ensombrada pela presença do meu irmão Manfred. Ele é tudo que o papai sempre quis num filho, ele nunca deixou de dizer isso para nós dois, então, esse meu projeto era uma forma de mostrar a ele que eu também era capaz de algo... Engraçado como naquela época eu me importava com algo a mais além dela...
Ah sim, o flame pack! A grande idéia! Consistia de um cilindro de metal cheio de gás acetileno preso ás costas, ligado à uma manopla metálica por um cano de borracha. Um lança chamas mais fácil de carregar. Eu achei mesmo que se eu construísse um desses o meu pai repararia em mim, e ainda melhor: daria ordens para construção em massa do mesmo. Então, todas as noites para cá eu vinha, projetar e trabalhar nisso, como se mais nada importasse. Naquela época tudo que eu queria era mostrar que sei fazer algo.
E assim foram noites e noites a fio; soldando, cortando, martelando... Sabe, trabalhar com fogo nem sempre é seguro e as vezes eu me causava queimaduras, nada muito grave mas ainda assim, ferimentos indesejados. Uma dessas vezes, quando fui testar a manopla com lança-chamas, algo deu errado e ela explodiu na minha mão. Explodiu é um modo de dizer, ela começou a pegar fogo, mas por sorte, eu consegui tirar a tempo e os danos não foram muito grandes, o problema era que àquela hora da noite eu estava sozinho e tive que correr para enfermaria porque ninguém viria para me ajudar. Desci as escadas e corri pelo corredor longo do almoxarifado até a sala dos remédios, por que tinha que ser tão longe?
Tratei minha mão, usei aquela pomada pra pele queimada e a enfaixei como pude. Tive raiva de mim e dessa idéia idiota. Saí da enfermaria batendo a porta, mas sabia que logo que a dor passasse a raiva também passaria.
Foi então que ouvi.
Parecia um choro, era baixo, como um sussurro, como se alguém estivesse tentando esconder que estava chorando. “Quem ta ai?” gritei. Minha voz ecoou, mas não houve retorno. De fato o choro havia sumido. Com o lampião na mão e uma chave inglesa na outra, avancei pelo corredor. Percebi nesse momento que eu estava numa parte muito afastada do laboratório, uma parte que eu nunca tinha estado antes.
“Você está ai? Não vou te machucar!” disse, apesar de estar segurando uma pesada chave na outra mão. Não houve resposta. Caminhei até uma porta estranha; toda cinzenta e sem nenhuma indicação do que deveria ter lá dentro. Além disso, a porta estava entreaberta o que não é comum nesse lugar.
“Alô?” abri a porta lentamente, deixando a luz entrar. A verdade é que eu estava morrendo de medo. Aos poucos, abri toda a porta. Ergui o lampião para poder ver a sala toda: muitas caixas empilhadas, todas empoeiradas, pareciam que estavam ali há muito tempo. Esperei meus olhos se acostumarem com aquela iluminação, quando então, notei algo no escuro, era um pano preto cobrindo algo. Parecia uma pessoa sentada numa cadeira. Seria ela quem eu ouvi chorando?
“Ei você” chamei, me fazendo de valente. Nada. Não se mexia nem falava nada. Lentamente, aproximei-me mais e com a ponta da chave, ergui o pano... E foi quando eu a conheci. Estava sentada e amarrada na cadeira com a cabeça caída para frente. Os cabelos eram castanhos e cacheados e o vestido era bonito, mas antigo, roxo e branco.
Tentei falar com ela e esperei um tempo, olhando-a, mas não se mexia. Toquei-a no rosto e levantei sua cabeça; sua pele era fria. O rosto estava todo pintado como maquiagem. Os olhos estavam fechados. Percebi então, que era uma boneca.
Soltei as cordas dela. Porque teriam amarrado ela dessa forma? E quem será que a trouxe para cá? Seria coisa do meu pai? Tratei de iluminar o resto da sala, queria vê-la melhor. Era linda, quase parecia viva. Deduzi que tinha a minha altura. Por algum tempo fiquei parado admirando-a: o desenho do seu rosto, seus lábios pequenos e bonitos, seu corpo... Meus olhos corriam pelo corpo dela, estava de sapatos pretos e meias brancas e compridas. Toquei-a no rosto, não consegui identificar do que era feita aquela pele, era macia, quase como pele humana, mas tinha algo na textura que era diferente. Com meu dedo, mexi seus lábios e abri sua boca: era seca, mas possuía dentes fortes, talvez feitos de alguma liga metálica. Desci os olhos pelo pescoço dela e inevitavelmente olhei seus seios... Não eram grandes, mas eram perfeitos...
Estremeci. Senti um calor correr por todo meu corpo. Nunca tive uma mulher assim tão perto de mim. Nunca tive mulher alguma, na verdade. Não sou bonito, não tenho bom papo, não sei dançar e não sou popular... Isso deve explicar muito sobre mim, eu acho.
Antes que pudesse perceber, eu estava com minha mão nos seios dela, cabia todo na minha mão. Eram duros, mas, macios ao toque, como a pele. Meu coração estava acelerado: meu interesse pessoal era muito maior do que o interesse científico que eu deveria ter.
Pousei minha mão enfaixada a sua coxa por cima do vestido e a apertei; parecia muito real. Na verdade era tão real que eu tinha medo que ela ganhasse vida a qualquer momento. Gentilmente, se é que isso é possível, deslizei minha mão para baixo do vestido dela, apalpando o interior daquelas coxas macias e frias. Logicamente, minha mão subiu um pouco mais... Fiquei surpreso ao sentir que ela estava vestindo calcinha. Se bonecas pequenas vestem, porque as grandes não?
Aquele foi o momento mais erótico que tive em toda minha vida, eu estava elétrico e mais quente do que a fornalha de uma locomotiva, mas ao mesmo tempo sentia o coração pesar; ela estava ali parada sem poder se defender dos meus assédios. Era só uma boneca, mas eu me sentia um canalha. E eu não sou assim, nunca fui. Beijei-a.
Grudei meus lábios aos lábios de borracha dela, aliciando suas intimidades artificiais. Meu coração estava agitado como um motor à vapor, pela primeira vez eu senti êxtase completo. Meus beijos faziam a cabeça dela pender para trás, então usei a mão que estava em seus seios para segura-la pela nuca, igual àquelas historias de amor.
Com muito cuidado, enfiei a mão por trás de seus cabelos e a segurei para dar mais apoio ao meu beijo, quando então senti algo. Letras. Uma palavra gravada em sua nuca. Minha curiosidade foi muito grande, seria um nome? Uma data? Parei o beijo para olhar; afastei seus cachos castanhos e li uma palavra quase apagada: Kaledrina.
Seria seu nome? Pensei. Ou quem sabe o nome de uma antiga dona... Kaledrina. Um nome diferente. Deve ser estrangeiro. Diferente mais muito bonito, assim como ela.
“Vou chamá-la de Kale” disse a ela, como se ela fosse entender. “Você gosta?” sem resposta, claro.



CONTINUA...

by kennen

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