domingo, 16 de março de 2014

Imortal



Duas da manhã.
Droga!
Ainda não posso parar. Tenho que terminar....Tenho!!!
Com os pensamentos voltados para sua mais recente aventura, Carlos não se importava com os ponteiros do relógio que teimavam em percorrer aquela mesma monótona circunferência de sempre.
As ideias surgiam em sua mente como folhas e mais folhas de um roteiro pronto esperando para ser lido. A criatividade no auge, tudo para que aquela fosse sua obra prima, seu momento máster de uma carreira que até hoje não havia ultrapassado a condição transcendental esperada por muitos que a seguiam.
A história, cujas letras eram marteladas num teclado, era inspirada naquilo que mais impulsionava Carlos a escrever. E todas as noites ele dedicava seu tempo para aquela exaustiva, mas compensatória atividade.
Seus dedos eram como máquinas e a mente estava a mil. Tudo o que ele sentia era o som que as palavras produziam dentro de si como se fossem parte de seu próprio organismo. Eram vivas as ideias que se projetavam de sua cabeça e quase palpáveis.
E assim, aquela dança com as palavras e ideias se prolongou até que a noite se fez dia e o dia se fez noite novamente. Não sabia exatamente que horas eram, mas quem se importava com aquilo? Não se lembrava do dia, do sono, do banho, da comida, não se lembrava de nada, a não ser de suas preciosas palavras.
E cada vez que se levantava para fazer algo ou comer alguma coisa, ele se lembrava de seu livro. Não queria abandona-lo, não tinha forças para deixa-lo, era incapaz de se sentir bem estando longe das linhas que continham as marcas de seus pensamentos.
A cada parágrafo novo o colapso lhe vinha a mente.... Se eu o deixar agora....não!! Sem intervalos, sem pausas!!!
Os dedos anestesiados tornaram-se partes involuntárias dele mesmo. Não tinha sono, não tinha fome, não tinha nada. Nada, a não ser sua ideia e sua inspiração. Inspiração forte que o dominava por completo.
E a força ou a inspiração que o fazia sempre persistir vinha de outra pessoa. Vinha de alguém com quem Carlos desejava passar todos os dias, todos os momentos e cada segundo. Essa força que lhe concedia capacidades quase sobre-humanas estava impregnada no ambiente em que Carlos escrevia. Cada parede, cada canto, em cima dos móveis, em cada lugar. Lá estava. Era notável até mesmo para mim que não costumo reparar muito e apenas faço o que tenho que fazer.
Mas para Carlos eu abri uma exceção, um desvio da minha conduta imparcial e inquestionável. E a primeira “coisa” que percebi ao encontrar Carlos foi a extensão da sua inspiração, o tamanho irrevogável da sua vontade. E todas as imagens, fotografias, recorte, textos, pinturas, absolutamente tudo reportava o mesmo rosto, o mesmo traço, a mesma descrição. A bela jovem, inspiração para Carlos.
Sua bela obsessão que se transformou em palavras enquanto seu corpo definhava por cansaço.
E agora que observo mais atentamente a tela do monitor, percebo que Carlos realmente está no fim de sua obra. Uma belíssima história totalmente dedicada para seu amor.
O ponteiro dá mais uma volta e para.
Acabou a bateria, ele não percebeu.
Olho para o lado e noto outro rosto. A familiar garota das fotos está ali. Sorriso espectral.
No monitor vejo Carlos digitar sua última frase e uma dedicatória incrível. Não consigo esconder uma pontada de “sentimento” quando vejo que também fui mencionada em seu livro.
Olho novamente. Já esperei tempo demais e não posso atrasar. Já é hora, Carlos. Penso comigo mesma.
Caminho lentamente por detrás dele. E pela primeira vez em muito tempo sei que fui também a responsável pelo cumprimento de algo, no caso, aquelas palavras que se tornaram parte de um livro. Sou também a causa da inspiração, mas isso não me engradece de forma alguma.
Em minhas mãos sinto o peso que cada ser carrega e traz para mim.
Trabalho terminado. Apago as luzes antes de sair.
O som do teclado não é mais audível. A luz do monitor está acesa e as palavras refletidas permanecerão fixas.
Os ponteiros imóveis agora marcam duas da manhã.

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